O Estado que existe em cada um de nós

A diferença entre quem entende de política e quem faz marketing político é que os primeiros partem do princípio de que o eleitor é inteligente e os segundos acham que o eleitor é imbecil (Mauro Santayana).

Ao iniciar esta reflexão sobre nossa relação, sobre nosso papel, no cotidiano e evolução do Estado, a partir da análise do filme “Capitalismo uma história de amor”, de Micheal Moore, do texto de Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, e da rica troca de experiências do primeiro encontro presencial da turma do curso de especialização em Gestão Pública e Sociedade, me surpreendo ao relembrar as inúmeras vezes em que criticamos ações de governantes ou simplesmente nos sentimos enojados com os rumos de nosso país, sem nos considerarmos parte responsável daquelas ações.

O princípio de que “a coisa pública não é de ninguém” é equivocado. A coisa pública é de todos, e nós devemos nos sentir responsáveis por esta “coisa” não porque ela é minha, mas porque ela também é de outra pessoa – ou outras pessoas, todas elas. E a coisa pública é gerenciada pelo Estado, por nós. Mesmo aqueles que não votam, por protesto ou falta de opção, não podem se eximir da responsabilidade deste gerenciamento, porque o Estado não é composto apenas pelos políticos, e sim pelo conjunto de todos os “organismos” que conduzem uma nação, personificados nos três poderes e nas instituições públicas.

O Estado, como discutido pelo nosso grupo, não é um agente passivo, uma máquina, mas um organismo vivo, multidimensional, transversal, uma teia complexa na qual estamos presos enquanto, simultaneamente, ajudamos a tecê-la.

Precisamos sair de nossas caixas, de nosso isolamento que se rompe apenas quando nos envolvemos com uma causa que nos atinge diretamente, individualmente. Devemos nos sentir parte do Estado, e conseguir atuar e modificar seu rumo, de acordo com o que é melhor para o coletivo, mesmo que isto signifique não ser o melhor para mim, individualmente. Nos definimos como um coletivo, como uma sociedade colaborativa, quando, na verdade, mais nos aproximamos de um “individualismo coletivo”.

E, desta forma, nos sentimos capazes de criticar uma “máquina” da qual não temos controle ou não exercemos nenhuma influência. Na verdade, depositamos a culpa de toda influência negativa no sistema que direciona os rumos do Estado – o Capitalismo.

Mas se o Estado é a máquina, o Capitalismo é o movimento, é como cada engrenagem se relaciona com as demais engrenagens – e devemos aqui ter consciência que nós somos, cada indivíduo, uma ou mais engrenagens desta máquina, regidos e responsáveis pelo mesmo sistema.

Matematicamente, nós pertencemos ao Estado que é contido pelo Capitalismo, o qual somos os responsáveis por alimentar, afinal, antes de sermos o Estado somos consumidores. Confuso?! Bem vindo ao clube.

O exemplo dos abutres imobiliários, no filme de Moore, demonstra claramente como não apenas o Estado, tido como repressor ou “desvirtuado”, é o sistema, mas todos os indivíduos o são. Se não existissem abutres imobiliários, se novos compradores se importassem com a origem do imóvel, se estes imóveis permanecessem vazios em uma coletiva manifestação de solidariedade e respeito, o Estado não os desocuparia em virtude de uma hipoteca não paga. Aliás, hipoteca bem do grego “hypotheca”, que significa “pôr sob”, “dar como empenho”. Então, é preciso que o indivíduo dê algo que adquiriu através de seu trabalho para poder subir um degrau, em um sistema onde o risco do crescimento coletivo (vários degraus) recai exclusivamente sobre este indivíduo – ou sobre a parcela de indivíduos menos favorecidos?

O filme traz exemplos de pessoas que, uma vez parte do capitalismo, mesmo revoltadas, não concordantes com o processo (quando lhes afeta negativamente), já obtiveram algum lucro ou usufruíram do sistema. No momento em que o sistema os afeta individualmente, há então o sentimento de revolta.

Segundo Perry Anderson, o neoliberalismo conseguiu convencer a todos que, pró ou contra o sistema capitalista, devemos seguir suas regras e aceitá-lo, porque não há alternativas para os princípios já estabelecidos. Não satisfeito com as mudanças no mercado, o neoliberalismo também provocou mudanças na própria forma como o Estado é conduzido.

Na atualidade o Estado é conduzido como uma empresa. Os atuais governantes concentram mais habilidades e técnicas gerenciais do que liderança, dedicação e visão global de mudanças que levem à melhoria da qualidade de vida e melhor distribuição de renda. O objetivo não é distribuir, equalizar, mas crescer “coletivamente”, mesmo que parte (a maior parte) deste coletivo siga o caminho oposto.

Quando não é possível governar o Estado como uma empresa, transfere-se então a uma empresa particular as tarefas que o Estado deveria executar, garantindo a eficiência (lucro) e abusos, sejam nas ações, sejam nas punições, nas aplicações, seja ou na obtenção de mais lucros…

Como então modificar o sistema, influenciar e alterar o comportamento do Estado? Nós somos parte deste Estado (lembra?!) e alimentamos o sistema. Através do sistema democrático de representação deveríamos ser capazes de provocar mudanças.

Alto lá! Se o sistema é capitalista, como o sistema é democrático? Democracia não é sistema, é o regime político que nos permite (ou deveria permitir) demandar por mudanças, expor as necessidades e desejos coletivos, e encontrar solução para os problemas que atingem a todos, coletivamente.

Longe de defender o ideal americano, devemos admitir que o processo de representação no sistema eleitoral americano é (um pouco) mais eficiente que o brasileiro. Demandas de grupos podem ser levadas a seu congressista que, no sentido de garantir seus futuros mandatos, irá propor mudanças ou evitá-las.

Na crise financeira americana os eleitores tomaram ciência, se informaram, e puderam “telefonar” para seus congressistas e pedir que votassem “não”. E assim foi feito. Bem, apesar dos desdobramentos terem tomado outro rumo, e levado o Governo americano a socorrer as instituições falidas, em primeira instância o sistema representativo funcionou.

No Brasil, não alcançamos nenhuma instância. Temas relevantes para o presente e futuro da população são analisados, votados e implantados sem nenhuma participação dos eleitores. Orçamento participativo? Como participativo se as opções deste orçamento já estão em pauta? E cabe lembrar que esta participação tem um alcance local, com um valor total orçamentário previamente definido.  Isto só a ajuda a ofuscar outros temas e assuntos que deveriam ter nossa atenção e participação.

Não podemos esperar que este sistema de representação, no Brasil, evolua ou sofra qualquer alteração simplesmente porque o percebemos errado – as pessoas que poderiam modificá-lo “de dentro” dos nós da teia do Estado são aquelas que mais se beneficiam pelo atual formato.

Devemos, então, encontrar novas formas de nos organizar e pleitear pelas mudanças, inclusive por mudanças em como somos representados e influenciamos nas decisões cotidianas.

A desacreditação das ONGs, OSCIPs, e outras organizações da sociedade civil ocorreram justamente porque pessoas com nenhum interesse nestas mudanças fundaram organizações para drenar recursos do Estado. Conseguiram, em um só golpe, mais dinheiro para suas “causas” e abalar as estruturas que legitimamente se firmavam para representar a população e demandar pelas mudanças que desejamos.

O texto de Perry Anderson conta a história do surgimento da “Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes”. Esta sociedade e seus ideais vieram à tona no pós-guerra, em 1973, quando o mundo capitalista desabou. Afloram as idéias neoliberais, que nos norteiam nos dias atuais.

O exemplo da Sociedade de Mont Pèlerin mostra como um movimento organizado por um grupo (organizado) de indivíduos foi capaz de modificar ou ajustar o sistema dominante, em um processo lento, silencioso, que esperou o momento correto para vir à tona e desencadear programas e processos.

Talvez agora seja o momento em que os movimentos sociais, que muito progrediram nos últimos anos, se reinventem para desencadear novas mudanças. Mudanças que serão lentas, mas permanentes e focadas no benefício comum, de todos.

Talvez seja momento para que estes movimentos sociais não mais permaneçam silenciosos.

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